19 agosto 2020

Doce

     Sua rotina de home office às vezes começava cedo, pre-ci-sa-va tomar um café reforçado para começar bem o dia. Café, bolo, pão crocante na chapa, geleia, frutas - sonhava em todo dia ter um buffet de café da manhã de hotel, cheia de opções, mas era grata ao que tinha para comer aquele dia.⁠

    ⁠Ficou online, respondeu mensagens dos amigos no WhatsApp, viu alguns memes na internet e ligou o notebook para começar o trabalho. Abriu sua planilha, voltou ao relatório do dia anterior, respondeu email do chefe e colocou uma música para animar aquela terça-feira triste chuvosa.⁠

    Há alguns anos criou um perfil no instagram para falar sobre doces, sobremesas e outras coisas deliciosas que fazem os diabéticos pirarem. Começou por brincadeira, com uns seguidores, amigos, dicas e depois de um tempo bombou na internet. As empresas mandavam mimos, lançamentos e promoções para sua casa.⁠

    Aproveitou que o dia estava tranquilo e depois do almoço, resolveu arrumar umas coisas na cozinha. Pensava no cronograma da semana, no que podia fazer, quais produtos fotografar, experimentar, comer de sobremesa. Barrinha de cereal de morango, ou brownie com caramelo? Ótimas opções, mas ainda não era aquilo. ⁠

    O interfone tocou, porteiro avisou que uma encomenda tinha chegado, como ela não havia pedido nada, devia ser algum "recebido do dia". Se alongou, pegou sua chave e chamou o elevador. O caminho do elevador até a portaria era similar a uma criança indo a uma loja de brinquedos: sonhos, ansiedade, curiosidade, o que será que recebi? Pegou a caixa de papelão e voltou para seu apartamento.⁠

    Abriu a embalagem como quem abre um presente, sem rasgar o papel de embrulho, tentando demonstrar calma e controle, mas querendo desesperadamente saber o que tinha ali dentro: era uma caixinha de isopor com alguns potinhos de iogurte. A marca se inspirou na temática de fazenda e criou sabores do interior, como goiabada, cocada e calda de chocolate. Para mimá-la enviou também os clássicos de baunilha, abacaxi e morango.⁠

⁠    Só de pensar no azedinho e geladinho de cada potinho, salivou. Agradeceu mentalmente a empresa e ao destino por aquilo chegar no melhor horário possível! Estava decidido! Seria sua sobremesa, mas qual sabor?

    Procurou a melhor luz na casa para gravar e fotografar seu "recebido". Feito isso, correu para pegar uma colher. Abriu o de chocolate, pois assim já comemorava o final da tpm. O cheiro doce viajou até seu nariz fazendo surgir um sorriso involuntário no canto da boca. Pegou a colher, afundou no creme e sentiu a textura, antes de levá-lo até a boca, gravou mais uns depoimentos falando do aroma, da consistência e então provou.

    A mistura de doce e azedo passou dos seus lábios, língua até chegar na alma que reverberou de alegria, sentiu fogos de artifício de êxtase circulando pelo corpo todo - comida tem esse poder, nos faz sentir uma conexão entre corpo e alma. Fechou os olhos, passou a língua nos lábios e sorriu. Era exatamente aquele gosto que ela precisava para celebrar o dia.

    Seu notebook ainda tocava a playlist do almoço, alguma música latina a fazia bailar pela cozinha enquanto ela se deliciava com o doce. Começou a missão mais difícil: a de comer todo o iogurte do potinho - porque as empresas insistem em fazer essas ranhuras no plástico? Tem um tiquinho de doce que fica ali e não sai nem com reza brava, era muito gostoso para ser jogado fora. A criança interior voltou e com ela seu indicador, que alcançou o tiquitinho de doce na ranhura no fundinho do pote e o levou até a boca. Sucesso! Ela tinha uma particularidade, seguia uma sequência diferente de todo mundo para comer iogurtes, não conhecia ninguém que fazia o mesmo: ela deixava a tampinha para lamber no final.   

    Se encostou na janela e ficou admirando o papel prateado da embalagem refletir um pedaço do seu rosto com o iogurte cobrindo sua face. Se divertia com aquela ilusão e brincava com aquilo. O creme espalhado pela tampinha estava dividido entre o azedinho do iogurte (aquele que te faz contrair o canto da boca) com o doce do creme de chocolate (que te faz salivar só de pensar) antes de lamber fechou os olhos e pensou nas sensações causadas por cada sabor e mentalizou: que seja doce!

    O misto dos sabores e sensações voltou a dominar seu paladar, percorreu seu corpo inteiro e a quase fez levitar. Ela ria e dançava um forró que agora tocava. Abriu os olhos e viu seu vizinho, do apartamento em frente a admirando e rindo - há quanto tempo será que ele estava ali? Ele fez um sinal para o nariz dela, ela passou a mão e percebeu que estava suja de iogurte, os dois explodiram de risadas. Ele fingiu que dançava forró também, deu um giro, um sorriso e acenou, deu tchau e saiu de cena.

    Solteira há mais um ano, sentia falta daquilo, de compartilhar momentos, músicas, sobremesas com alguém. Se surpreendeu pela maturidade, por não ter se escondido quando o viu e ter conseguido rir da situação. Sabia que ele era novo no condomínio, gatíssimo, fofo, dançarino e com bom humor. Aquilo podia não dar em nada, ter sido só um flerte, só um momento, ou podia rolar algo mais para frente. Ela encarou novamente o iogurte, fechou os olhos, sorriu e jogou para o universo: que seja doce!


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