26 abril 2017

Respirei

São Paulo. Janeiro quase noite.Verão que me matava, mesmo sem o Sol qualquer um suava na rua. A mudança de temperatura pegou todos os meteorologistas desprevenidos, o calor aumentou mais do que eles tinham previsto.

Voltava para casa depois de hora extra no trabalho. O ônibus como sempre estava cheio de pessoas e de mau humor. Minha calça jeans a cada segundo colava mais na perna. Calor, tempo quente e seco. Janelas estavam abertas, porém não entrava vento. Suava. Sentia minha boca seca, engolia mas não vinha saliva, mão tremia, olhos pesavam, pressão caindo, sentia medo, visão ficando escura.

Era a curva do ônibus, ou senti meu corpo tombando? Caí no corredor, ou foi apenas sonho?

Senti meu corpo sendo elevado, dois braços me ergueram do chão e me levantaram. Acho que ouvi vozes. Senti a mudança de temperatura quando me levaram para fora do ônibus.

Respirei.

O mau estar foi embora tão rápido quanto a pessoa que me ajudou, sumiu.

Minhas mãos não tremiam mais, o soro que estava em minha veia me trouxe estabilidade e uma consciência cheia de dúvidas. O que aconteceu? Que lugar era este, um hospital? Quem me ajudou e me trouxe até aqui?

Quase duas horas depois, melhorei, estava menos assustada e com a pressão normal. A enfermeira me aconselhou a ir embora de táxi, uber, algo que eu fizesse menos esforço. Ganhei um atestado para não ir ao trabalho no dia seguinte, então poderia descansar e deixar esse episódio ruim para lá. Antes de partir perguntei a ela quem me levou para aquele hospital, ela respondeu: "um rapaz branco, magro e com barba" - ótimo, só batia com a descrição de dez caras que estavam no mesmo ônibus que eu.

Cheguei em casa sem ter trocado uma palavra com o motorista, minha mente estava longe. Larguei minhas coisas no sofá e fui tomar um banho quente. A água morna escorrendo pela minha nuca me relaxava, porém não conseguia tirar toda aquela cena da cabeça. Sai do chuveiro e me encarei no espelho. Achei um roxo no meu cotovelo e uns arranhados no nariz, fora minha cara abatida.

Respirei.

Conversei com umas amigas por telefone sobre o ocorrido, e para cada uma tentava montar esse quebra-cabeça, repassando os fatos na mente para preencher aquele buraco na linha do tempo e encontrar a peça que faltava. Nada. Nenhuma nova lembrança. Decidi fazer um chá para tentar dormir. Enquanto a água fervia, filosofava tirando o curativo do meu braço, que protegia onde o soro havia sido aplicado. Puxei com força aquilo da minha pele e a aquela pequena dor foi a última que senti por meses.

Dormi.

Três semanas se passaram. Já estava recuperada daquele evento e melhor preparada: alimentação e hidratação em dia. Saí do trabalho mais tarde, não ligava, pois, era apaixonada pelo horário de verão. O calor como montanha-russa tinha seus altos e baixos, e aquela noite estava uma delícia.

Vi meu ônibus chegando no ponto, corri para a fila para não perdê-lo e no impulso desastrado da minha corrida, pisei no pé de um rapaz. Antes que eu pudesse me desculpar, ele se virou sorrindo:

- É bom saber que você está bem, moça! - falou o rapaz magro e de barba na minha frente.

Minha boca ficou aberta por uns segundos, engoli seco e tentei raciocinar. Eu reconhecia aquela voz, já tinha ouvido antes. Aqueles olhos castanhos também não me eram estranhos, sentia uma paz olhando para ele. Minhas pernas ficaram bambas, coração acelerado e boca ficando seca: era ele! Subi no ônibus atrás do rapaz juntando as moedas e as palavras para perguntar sobre aquele dia. Sentei ao lado dele e falei:

- Desculpas pelo pé e obrigada por aquele dia...

- Não fiz mais do que minha obrigação. Você pisou no meu pé aquele dia também, depois ficou branca e desmaiou, não deu nem tempo de ficar bravo. - ele falou rindo

- Pisei no seu pé aquele dia? - perguntei assustada confirmando como sou desastrada

- Você sempre pisa no pé direito, tá na hora de pisar no outro para não ficar com ciúmes...

Suspirei

25 abril 2017

Banner

O dia que minha bunda virou um banner, eu estava de pé com as costas arqueadas para baixo e com os cotovelos apoiados na mesa.

Minha bunda era a única de pé numa sala de sentados atentos às minhas "condições glutaneas". Era um banner, um outdoor pendurado no meio das pessoas.

Reinei absoluta por uns minutos até me tocar que a preferência nacional não era o foco do momento.

Sentei encabulada guardando a obra de arte - já que é minha chamo do que quiser - dos olhos dos demais, que se quer notaram o quadro exposto.

Tem artista que é bicho ruim, egoísta e acha que sua bunda arte é o centro do universo.

20 abril 2017

Pirata

As palavras sumiam quando ela mais precisava, ficava muda.

A foto que ela observava no Facebook a fazia embarcar em histórias dentro daquele olhar profundo.

Ele tinha cabelo escuro como a noite e comprido, um pouco abaixo da orelha. Seu bigode e barba eram bagunçados, um pouco falho, o que deixava o rapaz com um ar misterioso e descolado. Para finalizar, um brinco na orelha: era um pirata completo.

O pirata era um palestrante de um curso de redação publicitária, algo que ela já tinha formação, mas ficou curiosa com quais conteúdos podia aprender com ele:

   - Como enfrentar a deriva criativa?
   - Oceano do desespero sem ideias
   - Como atracar em uma ideia
   - Como persuadir sua tripulação
   - Qual onda criativa devo seguir?
   - Como sobreviver ao mar da inspiração


No meio da fantasia que criara imaginou estar num navio pirata, sem tripulação, apenas com ele, cruzando os mares. Durante a viagem ela descobria cada ponto interessante do corpo dele de acordo com o mapa do tesouro que possuía.

Iniciaram um jogo de contação de histórias, onde quem contasse mentira e outro descobrisse, teria que beber. Depois da segunda garrafa de rum, ela se aproximava do baú de tesouro, chegava mais perto da boca dele a cada pérola que ele dizia, e a enfeitiçava.

A história não tinha papagaio, perna de pau, ou invasão, era um pirata moderno num barco chique.

Na proa da embarcação olhava para o horizonte azul aonde seu comandante te levava. A lua cheia no céu refletia no mar e o vento soprava forte e gelado nos seus cabelos. O percurso seria curto, pois era um intensivo de final de semana, porém ela aproveitou cada momento da sua aula para tirar dúvidas e aproveitar melhor aquele tesouro.

A imaginação acabou afundando no momento que ela viu as vagas do curso esgotadas. Seu pirata partiu levando seu tesouro e o coração dela.



Trupe Chá de Boldo - Pirata

"Você, invadiu meu rádio aparelho vagabundo
Em sintonia o dia inteiro na mesma estação
Bandida
Assaltou minha ilha tranquila
Expulsou os corsários da minha ilharga
Com navalhas e canhões
Libertou da prisão meu coração pirata
Me atirou à sorte incerta das correntes
À navegação que fez da minha tristeza
Um náufrago"


ouvir: Trupe Chá de Boldo - Pirata

02 abril 2017

Fumaça

Meu rosto está colado no teu peito pouco cabeludo, minha cabeça se movimenta de acordo com sua respiração, descendo e subindo. Escuto seu coração acelerado e percebo que está no mesmo ritmo que o meu.

Minha mão desliza pelo outro lado qual não estou apoiada. Do pescoço te aliso até o umbigo e brinco nesse percurso diversas vezes até decorar cada pedaço do seu abdômen.

Sinto nossas peles se tocando. Minha coxa cruza sua perna e te encaixa em mim, sua coxa quente suada gruda na minha fria. Nossos pés também se tocam de leve, se sentem.

Vejo a fumaça dançando pelo quarto a meia luz. Bem de perto reparo no movimento da sua boca durante o trago, na pressão que seus lábios fazem no cigarro, e como eles ficam menos tensos quando você expele esse ar fedido. Eu sempre odiei esse cheiro, mas quando você o solta não me importo; a gente até brinca de descobrir desenho no ar.

A fumaça dança livre e solta pelo quarto em cima da cama, como eu estava ontem a noite no seu colchão. Dançava para você me fotografar, filmar, gravar meus detalhes até me convencer a posar nua para você.

Arranquei meio sem jeito meu tênis e meia, fiz um charme tirando a calça e virando de costas para você ver o detalhe de renda da minha calcinha. A camiseta branca e o sutiã voaram na sua direção enquanto eu ficava nua no meio do teu quarto.

Baguncei toda sua mesa perfeitamente detalhadamente arrumada, jogando tudo no chão e sentando em cima. Estava nua na sua mesa e olhando para você. Coloquei as pernas cruzadas pra cima ao meu lado e inclinei o corpo quase deitando, ficando apoiada pelo cotovelo, e a com a mão na cabeça. Te sorri e disse para começar.

Você tirou da mochila seu caderno e estojo. Escolheu o melhor lápis e pegou a borracha. Aumentou a música que tocava no seu notebook, puxou a cadeira que estava ali perto e sentou na minha frente. Me observou, mediu cada centímetro do meu corpo - e esse olhar ainda me causa arrepios- e começou a me desenhar.

Você tensionava os lábios,mordia o inferior quando se concentrava; seu pé direito balançava de acordo com a música - te sentia inquieto, via seus ombros tensionados assim como o movimento do seu braço.

Quatro músicas já tinham sido nossa trilha sonora, fazia mais de vinte minutos que eu estava naquela pose. Meu braço já estava formigando, minha musculatura tremia, não aguentava mais. Por cima do caderno você me olhou e deu seu sorriso mais safado dizendo para esperar mais um pouco.

Acabei! - você falou entusiasmado levantando da cadeira.

Desabei para trás deitando as costas na madeira fria. Meu braço e pescoço doíam. Estava dolorida, mas super curiosa. Queria ver o desenho. Você o trouxe até mim e eu fiquei boquiaberta, quase sem reação. Estava lindo, perfeito! Minhas marcas de expressão, meu sorriso torto, até a pintinha da minha barriga foram retratados com muita fidelidade.

Ao me lado você começou a massagear meu braço e ombro dolorido, enquanto eu ainda admirava o desenho. Os carinhos da sua mão se transformaram em beijos e fui beijada do pescoço até a ponta dos dedos. Tu pegou o desenho, colocou na cadeira e me ajudou a levantar, me conduziu até a cama e me deitou. Agora fazia massagens e dava beijos no outro braço. Posicionou seu corpo em cima do meu e nossas bocas se encontraram como seu lápis no papel, forte e cheio de movimentos. Suas mãos me tocavam como se estivesse fazendo rabiscos com os dedos, seus traços eram leves no começo, depois foram ficando mais fortes, saindo do rabisco para a arte final.

Nossa obra ficou espalhada pelo quarto; roupas, lençóis, cadernos e lápis estavam perdidos no meio da nossa bagunça criativa. A arte me consumia, fiquei sem ar com o coração acelerado e pernas tremulas. Te abracei, deitei no teu peito, você esticou o braço e acendeu um cigarro. Reparei na fumaça que subia. Fumaça essa que dançava livre e solta pelo seu quarto, igual a mim ontem a noite...