24 março 2017

Lição

Então depois de alguns anos voltei a estudar. Precisei me adaptar com as aulas, tarefas para fazer e trabalhos em grupo, sem contar o novo horário e a rotina diferente.

O centro universitário enorme: dois blocos de dois andares e diversas salas de aula, desde as convencionais até os laboratórios de informática e os ateliês de moda.

Estudo a noite e semana passada cheguei mais cedo; fiquei na pracinha perto do prédio um, ao lado do lago das carpas. Sentei em um dos bancos de madeira para admirar o ambiente e esperar minha aula. Já era outono e o vento gelado cortava a pele. Ouvia música no fone escrevia algo sobre a matéria que teria a seguir... E de repente meu fone ficou mudo, minha caneta sem tinta e o vento sem forças: você passou.

Como em um déjà-vu te vi novamente na minha frente e minha reação foi a mesma. Fui imediatamente atraída por sua pessoa, coração acelerou e senti minha face ficando vermelha.

Você passou com sua calça jeans clara, uma camisa azul xadrez e cabelos negros e longos presos em um coque. Como uma miragem você virou em um corredor e sumiu. Na loucura do impulso levantei como a mochila e as coisas na mão, mas sentei em seguida pensando: o que falaria se eu fosse atrás de você?

Lembro que faz umas três semanas que te vi pela primeira vez, no mesmo vagão que eu. Seu estilo cabeludo e magrelo me encantou, meu olhar logo pousou em ti. Ao seu lado havia uma moça, porém não sabia se era amiga, ou algo mais. Alucinada com sua presença, fingi tirar uma foto da linha do trem só para ter você como plano de fundo, e compartilhar com minha amiga que possui o mesmo gosto que eu. No exato momento da foto você olhou para mim, e hoje eu tenho seu retrato salvo comigo. Talvez seja por isso, que esses dias na universidade te reconheci: por conta da pintinha que você tem na bochecha perto do olho. Essa pintinha magnética que me faz querer te olhar mais e me atraí até você.

Na minha segunda semana na nova faculdade já tive minha primeira lição: precisamos estar preparada para as peças do destino e estar com a matéria na ponta da língua.

19 março 2017

Nego


Era a segunda vez que visitava aquela cidade, a primeira nem conta, pois era Carnaval e é tudo muito cheio, poluído, não dá para ver os detalhes, as cores e pessoas.

Na pracinha do centro, ouvi um grupo tocando percussão, ritmos típicos da região. Cheguei mais perto e vi que era uma oficina, uma aula para quem quisesse aprender a tocar algum instrumento, conhecer novos ritmos - algo que sempre quis.

Era aula de Maracatu e me deram um "abê" para tocar - aquela cabaça seca envolta por uma rede de contas. Sentia o peso do instrumento nas mãos, a temperatura, as contas passando pelos meus dedos, e o som que fazia a cada movimento que eu dava, era incrível.

As crianças e turistas que ali estavam, tocavam e se divertiam com a nossa banda improvisada. Eram sorrisos, gargalhadas e passos de danças. Era tudo muito leve, solto, sem preocupação, sem vergonha. Era contagiante! O calor da cidade vinha das pessoas também.

Alguns minutos depois chegaram uns três, quatro rapazes para tocar com a gente. Um deles ficou ao meu lado e me ensinou um jeito melhor de pegar no abê, para sair um som mais limpo.

Minha pele branca contrastava com a dele, um pouco mais escura. As tatuagens dele fizeram meus olhos analisarem ele como um raio-x, reparando nos detalhe. Era alto, magro, com uma carinha de mau caráter, estilo marginal - aquele estilo que a gente se atraí, mas fica com medo.

A aula durou mais ou menos uma hora e teria uma outra sessão no dia seguinte. Peguei o contato deles e decidi voltar depois para uma segunda dose.

Antes de sair, o rapaz com sotaque delicioso que estava meu lado, perguntou meu nome, de onde eu era, se já conhecia a cidade. Me apresentei e disse que conhecia bem pouco, e estava precisando de um guia para conhecer melhor. Ele se ofereceu para mostrar a cidade do ponto de vista dele, eu aceitei.

Subimos, descemos e viramos ladeiras do centro histórico de Olinda. Lá no alto dava para ver a praça, onde nos conhecemos, a igreja central, a cidade e o horizonte coberto de mar. Ficamos ali contemplando a paisagem, os detalhes. Vendo o sol se despedindo, sentindo uma paz me dominando.

A paisagem era linda. O sol ia embora, mas mesmo assim ele ainda queimava a pele e a alma, me aquecia e eu sentia um calor diferentes. Descemos a ladeira e ele me guiava pelos labirintos e ruas de casinhas coloridas, janelas baixas que davam quase para as ruas de paralelepípedos. Tropecei em um deles e ele me segurou para que não caísse. Aquele abraço durou um segundo para quem estava de fora, e uma eternidade para quem sentia sua pele tocada.

Ele segurou na minha mão depois do acidente, e foi mais fácil me guiar e ajudar - até que ele não era tão marginal assim. Me levou até um centro cultural que dava aula de dança e aprendi: coco maracatu, cavalo marinho - ele não saiu do meu lado e me dizia "faz assim nega", me ensinando o passo.

Dancei de tarde até à noite com ele. Depois da aula, sentamos na calçada e trocamos histórias, confissões e até algumas carícias. O sol já havia dado lugar a lua, mas o calor em mim, permanecia. A timidez deu lugar a um coração acelerado, a pele arrepiada, a troca de olhares mais profundos.

A lua brilhava no céu e eu sorria para ele. Ria quando ele cantava, falava que era perigoso por conta lua, que era para eu ter cuidado, em um misto de vampiro e lobisomem, beijou e mordeu meu pescoço.

Andamos até a praia. Meu guia me contava as travessuras que ele aprontou por cada ponto que passávamos. Sentamos na areia, perto do mar. Eu tinha ido poucas vezes para a praia a noite, ele disse que relaxava naquele momento, que se inspirava e meditava por ali.

Meu coração acelerado, acalmou. As ondas iam e vinham numa coreografia a parte. Eu parei, fechei os olhos e ouvia o barulho do mar. Ele pegou nas minhas mãos e imitava o movimento do abê de acordo com as ondas, era como se eu controlasse tudo aquilo - me senti tão poderosa, tão parte da natureza, algo que nunca tinha sentido antes.

Quase onze horas, meu celular tocou e eu como a Cinderela, precisei sair e voltar correndo para o hotel, resolver uns problemas. Precisava voltar imediatamente para São Paulo, então ele passou seu número e anotei no meu telefone. Deixei minha aula e ele para trás, mas prometi entrar em contato quando chegasse.

No meio da corrida e da confusão de arrumar as malas e sair correndo para aeroporto, perdi meu celular onde havia contato dele.

Procure por ele nas redes sociais, mas só com apelido que eu tinha era difícil. Busquei na oficina de música, de dança e nada.

Terminei meu relato, meu pedido de ajuda. Publiquei no Facebook na esperança que um dia ele pudesse ler.

Eu espero não tenho pressa, ele me ensinou a ter calma. Só olhar o mar, as ondas me acalmam, me fazem lembrar dele.

Um dia nego, eu volto para Olinda para me perder nas ladeiras e nos seus braços.